Um dos malucos cativos da área - tem dois: esse e o outro, o mais antigo, que antes era mais agressivo - pragueja raivoso no meio da rua, em frente a um vizinho de vista da minha cozinha. Fosse ele ficava esperto porque lá tem um cidadão de bem que ameaçava de bala o músico que teimava poesia contra a agonia na pandemia. Madrugada indo, o pregador da vingança insistindo, e eu passando ignorado, acarinhado pelo sol opaco de outono espreguiçando na perspectiva da Baronesa, funcionário saindo sem café de um conjugado do elevado.
Chego ao Bom Retiro por um caminho agora permitido, cerzindo as alamedas desvalidas do lado de lá dos Campos Elíseos. Revisitados por descrença e desgosto, o charme resiste nos solares condenados dos barões, de uma beleza estranhamente mais bonita do que se estivessem íntegros. Que força destruidora tem essa droga: destrói a vida das pessoas, essas casas mais que centenárias, esse pedaço da cidade! Penso no mais barroco dos filmes barrocos do Spike Lee: "Jungle Fever". Penso muito em cinema quando corro. Penso também parado.
Penso em outras coisas, mais ou menos importantes. Como nascem os cabides vagabundos de arame revestido das lavanderias? Como se multiplicam pela casa se eu não uso lavanderias? Precisa ver se eles não andam a destruir os mares junto com as garrafas PET, atazanando as anêmonas, enganchando nas guelras, pendurando nos cavalos marinhos.
O Bom Retiro já foi o puteiro oficial da cidade, servindo os imigrantes carentes desembarcados na Luz, antes da rodoviária na Júlio Prestes. Já foi dos italianos, dos judeus, dos bolivianos, dos gregos e salesianos... e é dos coreanos. A mesma jequice que agrega nome de loja às estações do metrô, inspirada, aqui quer por Coréia em tudo. A rua Prates já virou nome composto e, se deixarmos quieto, o bairro também virará. Nada contra a Coréia, tudo contra a estrupícia vereadora promotora do desserviço. Puta trampo depois pra desfazer essa merda!
Injuriado da cabeça aos pés, no calcanhar direito para ser específico, espetado por uma pedrinha penetra, eu acho. Remexo o pé pra cá, pra lá, e a bichinha no compasso. Incorporo, me acomodo e seguirei os quinze quilômetros que me faltam com um pas de deux no solado. A história do bairro se reflete na arquitetura: os predinhos; os prédios institucionais como o da Oswald de Andrade; o art nouveau raro e lindo do Santa Inês; a emblemática sinagoga; o casario dos operários; uma casinha de roça; a parábola da Casa do Povo. Esqueço as fábricas e as lojas.
Gabarito as quadras só agora quietas entre o rio e o trem atravessado por baixo e fecho a conta pela Barra Funda. Porque sou fino, passo na Fabrique para pegar uma Marcelle. O desinteresse comum dos das grandes cidades com o outro não acontece e não entendo alguns olhares. Lembrei, olhei pro pé direito e entendi. O Pegasus amarelo estava dramaticamente tingido de vermelho! A tal pedrinha, afinal, era um senhor caco de vidro incrustado, que varou a sola, a bolha de ar, a entressola, a palmilha, a meia e a pele grossa. Samaritanooô, antitetânica!